Setembro mudou

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   Sete da manhã como há muitos anos e as palavras rotineiras - "acorda"/"bebe o leite"/"escova os dentes"/"olha a mochila". Sai finalmente de casa, depois de pôr a louça na máquina e mudar a t-shirt ao João Miguel, que mais uma vez se distraiu a ver os desenhos animados enquanto comia os cereais. Putos na escola, deita o olho à capa do jornal, queima a língua na bica apressada, desrespeita os limites de velocidade, a mesma história de sempre para estacionar. Nove horas e um minuto. Ufa, o chefe ainda não chegou.

   A mãe parece fazer questão de abrir ruidosamente o  estore. A ela, aliam-se os raios de sol que teimam em incomodar. Merda, o saco da ginástica não está pronto. Os snacks a ocupar a boca enquanto os desaforos do pai ocupam os ouvidos a cada semáforo vermelho. Toque de furo. "Desculpe stôra...".

   O quê? O despertador já está a tocar? Mas deitei-me há... 2 horas. Dia de apresentação, nem pensar em baldar-se. Chuveiro a ferver, remelas fora, mais um dia em modo zombie. O autocarro que insiste em nunca vir quando faz falta e a cabeça que só pensa em desforra assim que a aula acabar. Ao contrário das jolas que perdem o gás, os livros podem esperar!

   São os velhinhos, muito velhinhos, que já perderam a conta aos dias. São os velhinhos, menos velhinhos, que ainda os contam e podem assim agendar as tarefas na sua horta, dar uns passeios até ao largo, jogar à sueca ou comentar a novela.

-- alguns anos depois, em Portugal --

   São os velhinhos, menos velhinhos, a encostar-se aos mais velhinhos - ainda que a idade os separe, a mente fraca assemelha-se. Sem dinheiro para medicamentos e felicidade, foi-lhes roubada a genica e esperança, para si e para os seus.

   São os pais a pressionar os filhos, desde tenra idade, para serem os melhores. São os filhos a ficar egoístas, obcecados, egocêntricos e calculistas, a desperdiçar os "melhores anos da sua vida" numa competição feroz. É o mau ambiente em casa. São os amigos, que deixam de ser amigos porque os negócios são à parte. São os filhos outrora pressionados, a atingir os almejados diplomas e a ficar em stand-by como tantos outros. São os pais a moer-lhes a cabeça, que se revolta tanto a cada "tem calma, serás recompensado" como a cada "podias ter feito melhor". São os familiares a bombardear a malta com perguntas. São as pessoas a querer ajudar. São as pessoas, muitas, a querer apenas cuscuvilhar - que a desgraça dos outros nos anime. É um outro João Miguel deste país a levar um chapadão por ter entornado os cereais, de uma mãe descontrolada e farta de lavar as t-shirts a frio, com detergente marca branca. São os professores de alunos com famílias antes "normais", com os já de antigamente "problemáticos", agora agrupados em turmas maiores - imagine-se a animação. É o carro a ficar em casa e a roubar horas de sono. São as filas nos serviços porque há menos funcionários. O stress que só cresce. Menos jolas na esplanada, para os que ainda se dão ao luxo de ingressar na universidade. É o despertador que outrora ouviu tanto palavrão, a ser elevado a objecto de culto: felizes os que têm razões para acordar.

   Antes voltávamos todos à escola ou ao trabalho - e, em alturas certas, transitávamos de um sítio para o outro. Hoje, temos a esquizofrenia dos tempos pós-modernos. Setembro mudou.

Comentários

  1. Mudou mesmo. Nem eu o descreveria melhor. Joana, tens um futuro promissor na escrita. Que bom que é ler-te. Se um dia decidires quero ser das primeiras leitoras e vou comer os rissóis e os croquetes do lançamento :D

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  2. Vi que me citaste, sim e como é óbvio não há problema nenhum! (:
    Tenho de concordar com o comentário ali em cima, é sempre tão bom ler-te. E este texto está fantástico.
    De momento (e não sei se é bom se é mau) ainda sinto que Setembro é o mesmo, vou voltar às aulas. Mas também sei que, se tudo correr bem, será o último ano de aulas que irei ter, a seguir mais um de estágio e depois não sei o que Setembro vai ser. Mas aposto que será parecido a este que retratas.

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  3. Obrigada meninas, vocês são uns amores :)

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